"Ó vós que aqui entrais: perdei toda a esperança!"

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Pode ficar com o troco


Caos, tem pessoas correndo e gritando. É algum tipo de briga, sabe aquele frio na boca do estômago que você sente quando está no meio de uma porra dessas? Estou sentindo isso intensamente agora. Tento me situar mas está tudo confuso demais. Encontro um local com luzes acesas, é uma banca de jornal, entro. Espero a confusão acabar, mas não acaba. Minha visão está embaçada, as luzes da banca de jornal vão se tornando borrões, um homem negro de braço tatuado se aproxima e me segura pela nuca. Ele está gritando, me perguntando algo. E é sempre nesse momento que eu acordo suando frio na minha oficina. Fico sentado na cama, não consigo mais dormir. 

Me levanto, preparo um café forte, faço meus exercícios diários. Fumo um cigarro. Abro a oficina, tenho um longo dia de trabalho pela frente. O garoto que me ajuda por aqui chega atrasado, como sempre. Dou um esporro nele. 
 
“Desse jeito tá foda, se você não quer trabalhar fala logo que eu coloco alguém mais competente no seu lugar rapidinho!”
“Desculpa chefe, prometo que não vou me atrasar mais!”

É sempre a mesma conversa, e no dia seguinte, sempre o mesmo atraso. Mas o garoto tem um bom coração. Trabalhamos normalmente até aparecer um dos clientes “especiais”. Um cara vestido de terno, entra dirigindo um opala pimpado, fumando um charuto. Lança um olhar irônico no moleque.

“Porque você ainda não demitiu essa bicha? Hahaha. ”
“O que você quer, Charlie?”

Sou bem direto com esse tipo, não gosto que eles fiquem dentro da minha oficina por muito tempo, eles são uma chamariz de problemas.  Estão sempre sendo seguidos por algum mafioso inimigo, ou algum policial corrupto ou, no pior dos casos, um policial honesto.

“Dessa vez será algo grande, falei pro chefe que você é o homem perfeito pro trabalho.”
“Que trabalho? Para de enrolar e fala logo.”
“Ok, ok. É o seguinte...”

Ele começa a falar mas fica quieto novamente e encara o garoto. Entendo o que ele quer dizer, mando o menino ir dar uma volta, ele sai emburrado.

“No próximo final de semana haverá uma grande festa cheia de jovens que só vivem uma vez. Vamos vender por lá. Precisamos que você fique atento do lado de fora, além de nos transportar na ida e na volta.”
“Quanto?”
“Dez mil.”
“É, pelo visto vai ser grande mesmo. Quantos de vocês eu vou precisar transportar?”
“Três.”
“Fechado.”
“Sabia que você não nos decepcionaria, Carlos. Sábado às oito estaremos aqui.”

Ele da uma grande tragada no seu charuto, solta a fumaça com um sorriso nojento. Entra no carro. Engata a ré. Ao sair grita com o garoto.

“Ê veadinho do caralho! Se você quer tanto assim se foder é só me avisar que eu dou um jeito em você rapidinho!”

Ele estava ouvindo a nossa conversa.

“Festa grande nesse sábado? É a festa na Sul, não é território daquele idiota, cuidado, chefe.”
“Ei, ei, ei! Deixa que dos meus negócios cuido eu! Agora vê se trabalha mais e fala menos moleque!”

Ainda dei um chute na bunda do infeliz, pra aprender a não ficar ouvindo minhas conversas. Mas ele está certo, Charlie está tentando vender drogas em território de outra máfia. Quais são as chances dessa merda dar errado? Eu devia ter desconfiado, era grana demais por pouca coisa. Agora já era. Pode ser com o merda do Charlie, mas trato é trato, não posso voltar atrás com a minha palavra, principalmente se tratando de mafiosos.

Fecho a oficina. Tento dormir mas não consigo. A semana passa rápido. Tento manter minha rotina mas algo me deixa aflito. Talvez seja o fato de que eu provavelmente vá morrer na merda de serviço que eu aceitei fazer pra aquela cambada de desgraçados que não tem uma porra de um motorista decente.

Sexta a noite, não saio, não bebo. Apenas fumo uns cigarros. Tento dormir. Dessa vez não sonho. Parece que pisquei os olhos e já é sábado de manhã. Inacreditável.

Oito horas. Os caras estão na minha porta. São pontuais. Charles me dá o endereço, realmente, é no lado Sul da cidade. Olho para o papel entre os meu polegares. Olho novamente pra ele, esperando que o cretino me de alguma explicação. Um pedido de desculpas já seria um bom começo.

“O que foi? Tô cagado?”

Eu entro no carro. Os caras entram. Estão todos quietos. As oito e quarenta e cinco chegamos lá.

“Espere aqui até agente voltar, se você cair, nunca nos viu na vida. E... Tome, não estou falando que você vai precisar usar isso. Provavelmente não vai. Mas é melhor prevenir do que remediar.”

Ele me entrega um 38.

Pego a arma, guardo na calça. Eles saem do carro. Entram no lugar. A festa está acontecendo em um grande campo de futebol cercado por muros. Não consigo ver nada lá dentro. Só as luzes e a fumaça que sai por cima. As pessoas começam a chegar. Esbarram no vidro do meu carro. Tem centenas, talvez milhares de moleques assim como o que me ajuda na oficina.

Ligo o rádio. Coloco um CD do Bob Dylan. Aguardo pacientemente enquanto as horas passam. Lá pelas quatro as luzes do evento se apagam, acho que está acabando. Ligo o carro e espero os caras saírem. Vejo um cara correndo, dois, cinco, vinte, cento e vinte, centenas. Centenas de pessoas correndo. Desligo o rádio e ouço melhor o que está acontecendo. Tiros. Deu merda. 

Fico atento nas pessoas, tento enxergar Charles no meio da confusão. Vejo um dos caras que eu trouxe saindo pela porta da frente, ele está correndo e atirando pra trás, com uma mochila preta nas mãos. Dois caras conseguem o cercar, ele está desesperado. Os caras não perguntam nada. Um deles atira na cabeça do rapaz e rapidamente começa a vasculhar a mochila dele. Ele fica puto e joga a mochila no chão. Fala com os outros dois e aponta pra uma direção, ele vai pra oposta. Merda, cade o Charles? As coisas estão feias. Ainda tem gente saindo da festa. Está uma gritaria. Olho pros lados freneticamente, procurando o veadinho que me deve dez mil. 

Ele vem por trás do carro, batendo no vidro.

“ABRE! ABRE!”

Destravo as portas, ele entra.

“Vamos! Vamos!”
“Mas e os outros?”
“Eles já eram! Agora vaza daqui!”

Acelero o carro, um dos caras viu o Charles entrando no meu carro. Ele aponta gritando. Ando dez metros, e tento fazer a curva pra direita, mas sou atingido por um Monza preto que veio rápido demais. A batida é feia. Fico atordoado por alguns segundos. A saída da minha porta está impedida pelo Monza. Dois caras descem do carro que nos atingiu, abrem a porta de trás e puxam o Charles. Apontam uma pistola pra testa dele. O veadinho está se cagando.

“Cadê a minha grana seu filho da puta?!”

Saio pelo banco do passageiro, fico em pé com dificuldade, está tudo girando. Me bate uma sensação de déjà vi. Sinto medo. Vontade de fugir. Fecho os olhos com força, respiro fundo. Os idiotas nem param um segundo pra pensar que o carro devia ter um motorista. Erro fatal. Saco o 38 e começo a atirar. Acerto um deles em cheio. O outro sai correndo. Charles também. Eles não sabem de onde os tiros vieram. Me abaixo para não ser visto. Consigo ver duas motos indo na direção que Charles correu. Acho que ele não vai escapar.

Quando as coisas parecem mais calmas, penso em sair. A rua está mais vazia. Por um segundo, olhei pra esquerda. E pude reconhecer uma mochila preta, ao lado do meu carro batido. Deve ter voado pra fora na batida. Me arrasto até ela. Abro pra ter certeza do que tem dentro. Meus deus. Estou rico. 

Me levanto disfarçando, guardo o revolver, olho pros lados e caminho em direção ao metrô. Estou mancando, com uma estranha falta de ar. Não é como aquele sonho que eu tinha, não vejo mais o caos, ninguém mais grita. Pelo contrário, a rua foi tomada por uma estranha paz, as pessoas estão falando baixo, se aproximando dos cadáveres estirados no asfalto. Contando umas pras outras as suas teorias sobre o que aconteceu ali. Alguns saem nas janelas pra observar de longe.

Vejo a frente uma banca de jornais, que está abrindo. O dono nem deve imaginar que merda aconteceu a uns cinquenta metros do trabalho dele. De acordo com os meus cálculos, é aqui que eu levo um tapa de um homem negro e em seguida, vou acordar suado.

“Hey! O que você tem na mochila?!” 

Ouço alguém gritar isso ao mesmo tempo que sinto uma mão pesada puxando meu ombro.

*** 

O Sol estava começando a nascer. Haviam no mínimo duas pessoas mortas a tiros. Havia uma batida de carros no cruzamento. Cujos motores inda quentes soltavam fumaça. Haviam pessoas que tiravam fotos e se aglomeravam em volta da cena antes que a polícia chegasse. Havia uma banca de jornal e um velho que organizava as notícias em ordem alfabética. Haviam os olhos verdes espantados de um homem branco, alto e forte com a mão no meu ombro. Havia o cano do meu revólver 38 com três balas encostado no estomago dele.

Dois disparos. Mais um corpo caiu morto. Caos novamente. 

O velho da banca está estático, me encarando. Olhei nos olhos dele, eu tinha mais uma bala. E na minha frente estava apenas uma testemunha. Guardei a arma. Coloquei a mão dentro da mochila. Tirei trezentos reais.

“Me vê um maço de cigarros, pode ficar com o troco”

“É pra já, senhor.”

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Paquistão - 13:27

A fumaça do cigarro me provoca ainda mais sede. Estou trancado em um pequeno apartamento há dias, a temperatura deve ser de 43 graus. Eu não tenho ar condicionado. Olho para as paredes do quarto, fotos, mapas, plantas. Na mesa a minha frente, micro câmeras, escutas telefônicas, cartões de crédito, passaportes falsos... Tudo isso daria motivos o suficiente pra eu ser morto umas três vezes.

Toca o telefone.

“Alô? Sim. Ah, claro! Com certeza estarei aí para honrar o aniversário de um dos meus clientes favoritos!”

Merda, como fui esquecer o aniversário?

Toca o celular.

“Pronto. Sim senhor. Estão indo bem. Hoje haverá uma festa para o irmão do alvo, na casa dele. Já sabe? Nove horas? Não, o senhor não pode atacar hoje, eu estarei lá! Senhor, colocará minha identidade em risco. Eu entendo ma-”

Veado, desligou na minha cara. Tá legal, o que eu faço? Invento uma desculpa? Não, será muito suspeito, não posso levantar desconfiança senão não passo do aeroporto. Ok, eu chego às oito, levo um presente. Entrego, faço alguns negócios, oito e meia eu pego meu carro e saio. Nove horas eu já estarei a quilômetros de distância do inferno que aquilo vai se tornar. Eu deveria saber que esse sargento iria me foder no final. Ao menos essa missão acaba hoje. Depois de tanto tempo... Há quanto tempo estou aqui? Quantos anos? Nem eu mesmo lembro.

***


19:30

Estou pronto, vestido de meu melhor terno. Com duas maletas blindadas. Em uma delas levo meu presente ao aniversariante - que tipo de presente se dá para um terrorista? - Na outra, uma AK-47 folheada a ouro. Espero que não precise vender essa obra de arte.

Celular 02 toca.

“Alô? Sim, em breve estarei aí! O quê? Estão aqui? Oh, sem problemas, já estou descendo.”

Merda. Merda. Merda. Não é que o meu cliente gosta tanto de mim que mandou um de seus capangas vir me buscar na porta de casa? Plano B. Plano B. Merda eu tenho plano B? Desço as escadas enquanto tento pensar em alguma coisa. Nada vem em mente. Chamo um táxi. Isso. Um táxi!

Cumprimento o capanga com um grande abraço, entro no carro e sou levado até a mansão do irmão de Osama. Entro devagar, tentando manter a naturalidade. Me sinto da mesma forma como me senti quando o encontrei pela primeira vez. Como se estivessem todos olhando pra mim. Como se eu não estivesse conseguindo enganar ninguém. O aniversariante está fumando narguile sentado em um tapete, a sua volta estão alguns dos irmãos mais importantes da família. Já vendi milhões em armas pra eles. Armas que vieram direto dos depósitos dos Estados Unidos.

Cumprimento-os com um gesto respeitoso. Entrego a maleta menor ao aniversariante. Ele a coloca de lado e diz que terá o prazer de ver o meu presente mais tarde. Ele me pergunta o que tem na maleta grande. Eu respondo que era algo que eu pretendia vender para o seu irmão, mas, ao que parecia, infelizmente ele não estava conosco naquela noite. Ele me diz que é realmente uma pena, mas que dará o recado de que eu tinha algo especial para vender.

O desgraçado não estava? Eu precisava avisar o sargento. Se aquela casa fosse invadida e o homem não morresse iria tudo para o espaço e mais dez anos de caçada viriam, com certeza.

Oito e meia, levanto-me e digo que preciso ir, pois naquela noite teria um negocio de emergência para resolver. Ele fica desapontado e oferece o seu capanga para me conduzir. Respondo que usaria um táxi. Ele insiste. Digo para não se incomodar. Levanto-me e saio andando em direção a porta, devagar, a passos leves. Sinto como se estivessem me encarando pelas costas. Acho que tem uma gota de suor escorrendo pelo meu rosto. Calma, mantenha os passos leves. Estou a três passos da porta quando ouço o aniversariante chamar meu nome. Merda.

Paro, viro-me pra trás, seu olhar está fixado em mim. Pede que eu volte. Tento explicar que tenho outro compromisso. Ele diz que Osama deseja me ver. Olho no meu relógio. “20:40”. Estou atrasado. Será que ele está aí mesmo? Digo que tudo bem. Caminho de volta, ele pede pro capanga me acompanhar até o quarto principal. Entro no quarto. Lá está, sentado atrás de uma mesa. No mesmo quarto estão sua esposa sentada na grande cama de casal e uns quatro homens armados com metralhadoras. Ele me cumprimenta com um sorriso, ouviu dizer “que eu tinha algo pra ele”. Respondo que seria uma ofensa ir até àquela casa sem nada pra vender. Coloco a maleta em sua mesa, virada pra ele. Abro-a devagar enquanto acompanho sua reação ao ver aquela belezinha.

Ele pega a arma nas mãos, a examina, aponta para um de seus capangas e declara que vai ficar com ela. Pergunta-me quanto quero.

“Dezesseis mil.”

Ele acha caro e tenta reduzir o preço. Eu aceito sua oferta, apesar de tomar prejuízo. Preciso sair logo da-

Sons de tiro.

Olho para porta, gostaria de ver que horas são mas pareceria estranho. Acho que chegaram cedo demais. Há uma gritaria lá em baixo, os sons dos disparos se aproximam cada vez mais. Todos no quarto ficam apreensivos e apontam suas armas para a porta. Menos eu, que não tenho nenhuma arma em mãos. Eu disse que aquele veado ia me foder!

“Mas como foi que descobriram onde estávamos?”, perguntou o capanga que havia me levado até ali.

Um homem vem correndo e abre a porta gritando, tentando avisar algo. Provavelmente que a porra do exército americano estava subindo. Mas foi interrompido pelas centenas de balas que levou das próprias pessoas que estavam no quarto, que, no susto, transformaram o cara em uma maldita peneira. Mal deu para recuperar o fôlego e os soldados já estavam à porta. Dando inicio à matança. Peguei a minha maleta e me protegi das balas que bateram violentamente e me desequilibraram enquanto eu pulava pra trás da mesa de Bin Laden, que foi o primeiro a cair morto quando começou o tiroteio. Eles quase me mataram.

“Americano! Americano!”, eu gritava desesperadamente com a ilusão de que não fosse morto pelos meus próprios compatriotas. Enquanto o fazia, o capanga que havia perguntado como os americanos tinham descoberto aquele esconderijo me olhou com um olhar de espanto, como se compreendesse tudo agora. Não acreditei quando o vi vagarosamente apontando a arma pra mim. Quero dizer, ele deixou os soldados de lado só pra me levar junto pro inferno. Precisei fazer uma escolha. Peguei a AK-47 folhada a ouro das mãos mortas de Osama e atirei contra os soldados surdos pela adrenalina e provavelmente cocaína, enquanto corri em direção a janela.

Pulei.

Atravessei o vidro e cai uma altura de uns seis metros em cima de alguns arbustos, tentei continuar correndo quando senti uma dor desgraçada na perna, deve ter quebrado. Manquei pro mais longe que eu consegui dali, o que não foi grande coisa. Senti um forte empurrão no ombro que me derrubou, empurrão que começou a arder pra caralho. Junto com a ardência, senti meu ombro umedecendo aos poucos. Não precisa ser um gênio pra saber que levei um tiro. Olhei pra trás e lá estavam o único cara que sabia que eu era um traidor e que eu abandonei pra morte certa, e mais dois armados. A minha sorte é inacreditável.

Veio correndo na minha direção e me deu um chute na cara, os outros que vieram atrás também me chutaram. Fui espancado por pouco tempo até que eles me colocassem de joelhos e com a testa pra cima. Meu sangue escorre por cima dos meus olhos, mal consigo abrí-los, sinto algo frio encostado na minha testa.

Dizem que na hora da morte sua vida passa diante dos seus olhos.

Não foi o que aconteceu comigo. Morri naquela noite. Mas antes do meu corpo cair, antes que aqueles três caras descarregassem suas metralhadoras no meu cadáver, eu vi algo muito peculiar. Vi os frutos do meu trabalho:

Vi a Fox News dando a notícia. Vi o povo americano, meu povo, saindo às ruas para comemorar. Vi o presidente se reelegendo. Vi que tudo aquilo na verdade era apenas um golpe político. Vi que meses depois as pessoas esqueceriam o Osama. Vi que ninguém notaria que a família Bin Laden continuaria fazendo negócios milionários com os Estados Unidos. Vi que minha missão não fazia tanto sentido pra mim, parando pra pensar sobre ela. E por fim, antes de morrer pude me fazer a seguinte pergunta:

“Mas que caralho que eu vim fazer aqui?”