"Ó vós que aqui entrais: perdei toda a esperança!"

terça-feira, 23 de julho de 2013

Nocturne Op. 9 No. 2


Tenho 43 anos, sou divorciado, tive dois filhos, um menino e uma menina, a mãe deles deve ter enchido a cabeça deles com tanta merda que hoje nenhum dos dois quer me ver. Eu era taxista, me aposentei por invalidez depois de um acidente com um ônibus, por isso também, uma das minhas pernas é fodida, sou manco pra caralho. Moro sozinho, o que me permite encher a cara quando eu quiser. Tenho um amigo que bebe umas cervejas comigo em um bar aqui perto. E é nisso que se resume minha vida.

Eu estava até que bem no começo dessa merda toda, mas ultimamente sinto os meus dias se tornando um fardo. Li uns livros que diziam que o melhor que se faz da vida é estar vivo. Não sei não. O suicídio parece cada vez mais razoável pra mim. Hoje em dia dá pra fazer isso sem dor. Tomar um monte de comprimidos e morrer tendo convulsão, parece uma forma confortável de sair fora. Fiz até um bilhete de despedidas:

"Preferi morrer logo do que viver essa vida de merda.
A quem for retirar meu corpo: desculpe pelo cheiro.
 Adeus."  

Suponho que iam demorar pra encontrar meu corpo, por isso o pedido de desculpas.


***

"Cara e os seus filhos?" 

Meu amigo está tentando me convencer a não me matar. 

"A mãe deles vai cuidar bem, ela já arranjou um babaca pra sustentá-los."

"Ta bom." 

Bom ver que o veado se preocupa. 
Termino o meu copo de cerveja, peço mais uma. 

"Acho que vou fazer hoje. Deixa que eu pago a conta, não vou precisar de grana pra onde eu vou. Eu acho." 

"Boa." 

Bebemos a outra garrafa. Compro um maço de cigarros e uma garrafa de vinho, vou curtir um pouco antes de morrer. Me despeço do amigo, acho que ele não está levando a sério. Subo pro meu ap frio. Coloco Chopin pra tocar, abro o vinho, acendo um cigarro. Sento na mina poltrona e fico tranquilo. Encaro a parede, meus móveis, a janela. Daqui a pouco vai acabar. Será que eu vou me lembrar de alguma merda dessa? 


Espero que não. 


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O Ônibus, o Metrô, a Pedra e a Gorda.



Acordei com a garganta estranhamente seca, desliguei o despertador, sentei na cama, pensei em dormir novamente. Não, preciso trabalhar. Fui ao banheiro e, ao me olhar no espelho, percebi que eu estava com uma puta expressão de desgosto. Cuspi na pia. 
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Ônibus quente, cheio, um monte de gente com mais de 60 anos espremendo-se na parte da frente. Me pergunto o que restou pra cada um desses fodidos pra precisarem sacrificar suas ultimas energias passando por essa merda. Um cara sujo está encochando uma estudante do meu lado. Ela pede pra trocar de lugar comigo. Eu troco, olho nos olhos do tarado. Percebo que estou esboçando aquela expressão de novo.
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 Dia cansativo, telefone tocando sem parar, sinto a gravata estrangulando-me. Saio pra tomar um ar, fumo um cigarro. Volto. Uma gorda fica jogando papéis na minha mesa a cada 15 minutos, ela me olha com um olhar de desprezo que só uma vaca consegue fazer. Me imagino fazendo-a comer toda essa porcaria, empurrando essa maldita papelada a socos pra dentro da boca dela. Merda. Preciso de outro cigarro.
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Sete da noite. Me levanto, afrouxo a gravata, sigo para o elevador. Todo mundo com a mesma expressão cansada. Metrô. Está um pouco vazio hoje, dei sorte. Encosto a cabeça na parede do vagão, respiro, em breve estarei em casa. Que dia de merda. Abro os olhos, tem um cara me encarando, ele deve ser mais novo que eu, está vestido como um marginal. E realmente, deve ser um marginal. Eu o encaro também. Estou fazendo aquela expressão novamente. Minha estação.
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Sigo pra um ponto de ônibus. Tem um cara discutindo com um velho. O cara está gritando. O velho diz que trabalhou trinta e oito anos da vida dele. O cara diz que ele fez isso porque era “trouxa”, disse que não precisa trabalhar, e quer que se foda. Que velho é uma merda. Cuspo no chão de desgosto, instantaneamente o playboy se vira pra mim. Trocamos olhares, ele ri. “Vocês todos tem mais é que se foder mesmo!”, falou enquanto saia vaiado pelas outras pessoas. Que dia de merda.
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Entro no ônibus. Sento perto da janela. Que dia de merda. Minha garganta continua estranhamente seca. O motorista dirige devagar, sinto uma pequena brisa no rosto. Farol vermelho. Dois caras na rua, estão gritando para as pessoas no ônibus. Me viro pra vê-los. Um é bem forte. “Vai filho da puta, olha pra frente!”. Que porra é essa? Continuo olhando pra eles. Estão me xingando. Um deles tinha uma pedra na mão, que foi atirada diretamente na minha testa. Que dia de merda.
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Sinto o sangue escorrer pelo meu rosto. “Pegou! Pegou! Para essa porra motorista! Para que agente vai pegar esse filho da puta!”. Fique meio desorientado, pedi pro motorista abrir a porta. Levantei e segui tropeçando pelo corredor do ônibus, com uma das mãos sobre o ferimento na minha cara. Pude ver do lado de fora os dois vindo correndo e pulando como animais. Um monte de imagens passam pela minha cabeça agora. A bunda daquela gorda, apertada por uma calça três números abaixo do ideal pra ela. A expressão triste de um velho que levanta as cinco da manhã pra pegar um ônibus lotado. O boné colocado de uma forma ridícula na cabeça de uma marginal. O bigodinho adolescente na cara de um playboy que grita com gente velha…
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… Um rato de academia entrando correndo pela porta do ônibus, vindo na minha direção, usando as duas mãos pra se segurar nas barras de apoio.
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Respirei fundo, a ultima parte racional de mim me fez esperar até que ele chegasse na distância exata para levar minha solada na cara, toda a violência contida, toda a merda que foi o meu dia, toda merda que é a minha vida. Resumiram-se no maxilar deslocado daquele cara. Ele caiu no chão, apagado. O amigo parou assustado, voei nele, dei um soco. Minha mão encharcada com meu próprio sangue. Filho da puta. Dei outro, e outro, e outro e mais um. Aquela gorda desgraçada. Mais um. Acho que quebrei alguns dedos. Comecei a usar o cotovelo. Uma, duas, três. Conforme eu batia, a cabeça dele batia na porta do ônibus. O corpo dele ficou mole. Soltei o cara.
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Estou ofegante. Minha cara e minha mão estão cobertos de sangue. As pessoas me olham assustadas. Eu olho pra todos eles. Estou fazendo aquela maldita expressão de novo:

 “Eles jogaram uma pedra em mim.” 

Falei tentando apontar pros caras com um dos meus dedos ferrados.