"Ó vós que aqui entrais: perdei toda a esperança!"

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Cidão e o encosto

Nunca fui um cara supersticioso. Pra ser bem sincero, eu nem acredito em deus, em santos, em fantasmas, em nenhuma merda dessas. Não acredito que quando eu morrer vou pra algum lugar onde o chão é de ouro e tem sete gostosas loucas pra dar pra mim. Muito menos que eu vá pra um lugar feito de fogo, onde um filho da puta sádico vai ficar enfiando um garfo no meu rabo. Não, definitivamente nunca acreditei em nenhuma dessas merdas. E mesmo assim aqui estou eu, ajoelhado dentro de uma igreja, conversando com o padre sobre o suposto encosto que têm transformado minha vida em uma merda nas últimas semanas.

"Você precisa ir ver o Cidão"  O padre falou.

"Cidão? Quem é esse cara?"

"É um xamã que mora pra pro lado de Taboão, em casos como o seu, ele é o único que pode ajudar"

"Puta merda, você não pode fazer alguma coisa? Sei lá, rezar um pai nosso?"

"Meu filho, você tem uma entidade real te fazendo mal, se Deus colocou ela aí, só a religião pagã pode tirar"

"Fala a verdade, você não sabe de merda nenhuma não é?"

Padre filho da puta.

Os últimos dias tem sido uma merda. Não consigo dormir, e quando durmo, tenho pesadelos. Comecei a sentir dor nos dentes, nas pernas, na cabeça. Cansei de tomar comprimidos que não fazem efeito. Já tinha aceitado viver assim, quando sonhei que tinha um encosto fodendo com a minha vida, por isso iniciei minha busca pela ajuda espiritual. E tudo isso tem sido uma merda.


***

"É o excesso de trabalho, amor"









Estávamos deitados na cama, eu e Luísa, depois de uma trepada. Ela está nua, com os seus seios pequenos apoiados no meu corpo, me olhando com curiosidade, como se procurasse alguma doença. Com esses olhos castanhos enormes.

"Trabalhei nesse ramo minha vida inteira e nunca fiquei tão ruim assim"

"Ixi, já pensou se você começa a ficar broxa também?"

"Cala a boca"

Assumo que esse pensamento me assombrou.

"Minha amiga conhece um sensitivo muito bom, que tirou o encosto do marido dela quando ele tava ficando broxa. Agora ele, o marido, não falha mais na cama"

"O que foi? Eu não te satisfaço mais caralho?"

"Não é isso, mas é bom prevenir né. O nome do sensitivo era... Hmm.. Cidão!"

"Que merda de nome"

***

No dia seguinte visitei Pai Bruno, um pai de santo que é famoso na região central. Ele estava em uma dessas casinhas no meio do lixo que tem no bairro da Liberdade. O lugar era mal iluminado, com pequenas lâmpadas acesas por gato ligado diretamente nos postes da rua. A tinta vermelha da parede já descascava quase que por completo. Fui guiado por um garoto até uma sala pequena, onde estava o pai de santo, um negro gordo, que vestia uma bata de ceda meio rosada, uns colares e uma parada na cabeça que não sei o nome. A cadeira em que ele estava sentado tinha um aspecto tão frágil que parecia que ia quebrar. A mesa também. Ambos os móveis esse filho da puta deve ter encontrado no lixo.

"Pode se sentar, menino" Ele disse.

"Prefiro ficar em pé" Respondi, com receio de quebrar a cadeira caso eu sentasse nela.

"Bom, se o menino quer ficar em pé isso não é problema meu. Que que tu tem?"

"Encosto"

Ao ouvir minha resposta, o Pai Bruno fez uma cara de desconfiado. Levantou e saiu da sala. Notei que aquele lugar tinha um cheiro doce, enjoativo. Fiquei sozinho por alguns minutos, quando ele voltou trazendo uma vela branca e grossa.

"Se a vela queimar preta, é porque o menino tá com bicho ruim. Se queimar branca é porque tá com bicho bom" E acendeu a vela.

Não entendi de primeira o que ele queria dizer. Ele agora cantava em um idioma que eu não sabia se existia mesmo ou se ele estava inventado na hora. O fogo da vela parecia queimar mais forte, então, aos poucos, a vela começou a derreter, a cera derretia escorregava e se acumulava na base, ficando cinza, depois preta.

Aí eu entendi.

Ele ficou nessa cantoria um bom tempo, a vela chegou na metade. A cera derretida tava mais escura que asfalto.

"Menino ta com bicho ruim, trabalho forte"

"E o que eu faço?"

"Menino precisa ir ver Pai Cidão"

"Puta que pariu!"

Ia meter um chute na mesa, mas uma dor súbita na perna me travou. Caralho. É melhor eu ir ver o Cidão.


***

Não costumo andar com meu equipamento pra fins pessoais. Mas dessa vez não tinha como. Eu estava indo pro meio do nada. Angustiado. Tava com uma sensação de merda. Não que eu pretendesse usá-lo, mas assim eu me sentia mais seguro.

Na porta do Cidão.

O Cidão trabalhava em uma espécie de cabana, uma construção feita de pedaços de pau, folhas, galhos, panos velhos. Tinham umas pessoas deitadas em colchões na frente. Uma molecada, uns velhos. Eles pareciam chapados. Fiquei ali parado um tempo fumando um cigarro. Uma garota branca, loira, jovem, descalça e seminua saiu da cabana, falou pra mim que o Cidão já me esperava. Ela tinha um olhar vazio da porra. "Que merda é essa" pensei.

Entrei na cabana, o Cidão era um velho, cabelo branco, longo, baixinho, devia ter 1,60m. Ele estava mexendo em uns frascos. Mandou eu sentar. Sentei. Com o cú na mão. Ele sentou de frente pra mim, me olhava fixamente, olhos verdes. Um gato branco saiu do meio do mato e pulou no colo dele.  Cidão levantou, acendeu incensos, borrifou o conteúdo de uns frascos em mim. Começou a emitir uns sons em tom musical e de reza.

Senti uma tontura. A cabana começou a girar. "Caralho, que merda que esse filho da puta jogou em mim?". Cidão dançava pela cabana, enquanto o gato estava em cima da cadeira me encarando. Tentei me levantar mas não conseguia. Senti um vento no rosto. Puxando minha pele. Era a entidade saindo? O gato começou a se contorcer, a rosnar. Puta que pariu. O Cidão não calava a boca. O gato deitou de costas todo torto. O velho parou, com os olhos revirados e começou a fazer sons fantasmagóricos. A cabana começou a tremer. Os frascos caiam da prateleira. O gato começou a se retorcer em movimentos violentos, me segurei na cadeira. "Pra que que eu vim me meter nessa porra". O bichano torceu o pescoço bruscamente, olhou pra mim e, aos poucos, começou a suspender na minha frente, o bicho estava flutuando!

"Caralho! Foda-se essa merda!"

Saquei a Taurus e dei três tiros no felino filho da puta. "Foda-se esse encosto do caralho!"

A cabana começou a desmoronar.

O Cidão ficou desesperado porque eu chumbei o gato, voou pra cima de mim, meti um balaço no peito dele.

"Foda-se você Cidão! Foda-se essa porra toda!"

Ia sair da cabana mas algumas das pessoas que estavam do lado de fora entraram correndo, vindo pra cima de mim. Atirei em todo mundo. "Vão se foder, loucos do caralho!"

Consegui sair da cabana. O resto do povo saiu correndo. A moradia do Cidão virou entulho. Estava caminhando pro meu carro. Parei, gritei o mais alto que pude e atirei pro céu até não ter mais balas no cartucho.

"TÁ OUVINDO?! FANTASMA FILHO DA PUTA?! APARECE DE NOVO QUE EU METO UMA BALA NO MEIO DA SUA CARA!"

Entrei no carro, respirei fundo e saí dali, era fim de tarde, a Francisco Morato estava sem trânsito. Acendi um cigarro e coloquei Dylan no rádio. Voltei pra casa aliviado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Exorcismo

Estávamos deitados. Na mesma cama, do mesmo quarto, do mesmo motel de sempre. Ela é a mulher mais perversa que eu já comi. A mais linda também. Esses olhos verdes, são os maiores que eu já vi. Estão me encarando agora mesmo. Ela está com a cabeça no meu peito. Seus peitos enormes pressionados contra o meu corpo. "Eu te amo". Ela disse.
"Mentira". Eu respondi.

- Você é incapaz de aceitar que eu te ame. Porque?
- Porque você não ama. É simples. Tudo o que eu mais queria era que você me amasse. Eu ia te levar dessa cidade. Não ia ter mais quarto de motel. A gente ia foder na praia, no mar, nas redes. Todas as noites.
- Isso é o que eu mais quero.
- Mentira. Caralho. Para mentir.

Ela me empurrou pro lado, se levantou da cama e começou a procurar as peças de roupa que estão espalhadas pelo quarto. O corpo magro, a pele macia, pálida. Parece que ela flutua suavemente pelo quarto. Andando sem fazer ruídos. Admiro-a por alguns segundos. Enquanto ela se abaixa pra pegar a calcinha dela.
Levanto rapidamente e abraço por trás, meus braços sobre aqueles peitos enormes.

- Então vamos, agora.
- Vai se foder.

E ela desliza entre os meus braços.

- Eu disse que você não queria!

Ando pelo quarto. Puto. Visto minha calça, sento na cama e acendo um cigarro. Ela coloca a calcinha. A calça. Senta na cama e engatinha na minha direção, me abraça pelas costas. Beija o meu pescoço. Faz com que eu deite na cama. Fica por cima de mim. Me beija. Esse beijo. Forte. Macio. Voraz. Puxa minha cabeça contra a dela como se precisasse disso pra sobreviver. Como se sobrevivesse do meu desespero.

- Eu te amo. É com você que eu vou casar. - Ela disse.
- Você não sabe o quanto me tortura quando diz essas coisas.

Ela ameaça sair de cima de mim. Seguro o braço dela. Com força.

- Às vezes eu tenho vontade de matar todos esses filhos da puta que você vive trepando pra satisfazer essa sua auto estima fodida.

Ela se soltou. Levantou puta.

- Cala a boca! Filho da puta! Doente!
- O que é?! A verdade é foda, não é?
- E como você sabe se você não é um dos filhos da puta com quem eu trepo pra satisfazer minha alto estima? Porque você pensa que você é especial?

Ela colocou o sutiã, a camisa.

- Porra eu te amo! Sou a pessoa que mais vai te amar na sua vida! Você sabe dessa merda e quer continuar nesse estilo de vida escroto. Chapada. Dando pra todo mundo!

Ela me olhou com os olhos fervendo. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. "Você é a pior pessoa que eu conheço". Pegou a bolsa dela e seguiu em direção à porta.

Consegui, caguei de novo. E eu sei pra onde ela vai. Sei quem são as amigas cretinas que ela vai procurar. Sei que ela vai passar o dia inteiro bêbada. Vai ficar rodeada de babacas submissos que vão comer na mão dela. Vai sentar no colo de algum espertinho nojento. Vai ser a mulher mais bonita que esse cara já comeu. Vai acordar fodida e de ressaca e vai repetir esse processo até cansar, entrar em desespero, fugir, chorar e me ligar. E eu estarei lá, como um idiota, pedindo, implorando pra ela ir viver  comigo longe daqui.

Ela abre a porta com força, com velocidade. Sou conhecido por ser rápido e silencioso. Antes que ela pudesse dar o primeiro passo pra fora do quarto eu já havia feito dois disparos. Um na cabeça e outro nas costas, do lado direito, uns 20 cm abaixo do ombro. O impacto das balas foram tão intensos no corpo leve dela que a arremessaram para fora, fazendo com que ela parasse na parede do outro lado do corredor.

A fumaça da queima da pólvora ainda saía da ponta do silenciador quando deixei o motel, minha visão estava embaçada pelas lágrimas.. O corpo dela ainda devia estar quente quando peguei o táxi. Vou sumir. Pra longe daqui. Pra algum lugar perto do mar.

Onde eu possa dormir em redes todas as noites.




terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O Motorista de Ambulância

“E AGORA?”

Analiso a pergunta escrita em tinta preta e caixa alta na minha parede da sala. A pilha de contas em cima da mesa começa a me nausear. Esse é meu último mês. No próximo eles vêm tomar minha casa. Acendo um dos meus cigarros baratos.

“Fui vencido”

Eu que tinha a Vontade de um Herói. A ganância de um tubarão. Repasso os ultimos meses na minha cabeça, enumerando meus erros. Merda atrás de merda. A fumaça do meu cigarro vai tomando o ambiente, deixando-o cada vez mais cinza.

Ao lado da pilha de contas, está o meu revólver novo.

A pior parte é não ter a quem culpar, é saber que, nesse caso,  o único que merece a bala na cabeça sou eu mesmo. O calor da brasa do cigarro, já no fim, queima meus lábios. Jogo a bituca pra um canto e me dirijo até a mesa. As contas continuam lá.

“Filhos da puta”

Mas que mundo é esse onde um derrotado não pode nem conviver com seu desgosto em paz? Eles não largam do seu pé até que você esteja na rua. Mandam conta atrás de conta, ficam te fodendo. Visto o coldre e pego o revólver.

“Vou mostrar pra eles”

Querem me despejar né caralho?  Caminho pela rua procurando o alvo mais chocante. Vou mostrar pra eles. Ninguém fode com David Fletcher, eu é que fodo com todo mundo. Estou em dúvida entre os diversos alvos, quem eu pego?

“Um motorista de ambulância”

Perfeito. Mando pro saco o cara, e o doente. É criativo. Nunca vi um caso desse antes. Nessa cidade o que não falta é ambulância correndo na rua. Caminho até as redondezas de um hospital. Tenho outras idéias promissoras, mas me mantenho fiel ao motorista.

Espero uns minutos até ouvir o som da sirene vindo em minha direção. Lá está ela. Grande, branca. Da calçada aponto minha arma pro motorista, que para imediatamente. Cuzão. Mando ele descer. Ele sai chorando. Pedindo pra eu me acalmar.

“Ajoelha”

Ele pergunta porquê. Chora feito um bebê enquanto faz vagarosamente o que eu mandei. Uma gorda desce pela porta de trás da ambulância perguntando o que aconteceu e quando vê a cena que eu montei solta um grito e leva as mãos na boca.

“Fica quieta que você é a próxima”

Ao ouvir isso a desgraçada tenta correr, desastrada, tropeça e cai de boca, como se fosse merda, e apaga. Essa me pegou de surpresa. Pergunto pro infeliz se ele estava levando algum doente. Ele diz que sim. “Não se mexe, vou checar”.

Um velho.

Entubado. Fraco. Olha pra mim sem entender o que está acontecendo. Pergunto como ele está se sentindo. Ele faz um sinal de positivo com a mão trêmula. Caminho até a gorda. Chamo o motorista “me ajuda aqui”. Carregamos a gorda pra dentro da Ambulância.

“Você é o cara errado, me desculpe”

Ele agradece, entra no carro e vai embora. Descarrego o revólver. Jogo as balas em um bueiro, e a arma em uma lixeira. Matar um motorista de ambulância, que idéia estúpida. Pego o caminho de volta pro meu apartamento cinza. Mais uma derrota.

Acendo um cigarro. Lembro das contas em cima da mesa. Sinto náusea.

Vou queimar aquelas merdas.