"Ó vós que aqui entrais: perdei toda a esperança!"

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Manhã

Como sempre, acordei me sentindo estranho, não pensava direito, meus movimentos eram confusos, até as sensações eram confusas, o castelo parecia um pouco mais vazio que o normal, me senti sozinho. Conforme caminhava pelos meus corredores, passava as mãos em cada pedra, em cada móvel. Ia me sentindo melhor. Fui até a janela, olhei pra fora, e um lindo dia acordava comigo, podia-se ver as borboletas voando em pares, os bem-te-vis cantando nas enormes árvores do horizonte. O parapeito de pedra da minha janela estava gelado pela relva. O ar era puro. E então, enquanto eu estava hipnotizado pela paisagem do meu paraíso, fui interrompido por uma doce e melódica voz: “Com fome meu filho?”. Ah, é minha bela mãe! Com a pele lisa como seda, as bochechas rosadas naturalmente, os cabelos loiros sempre penteados e os olhos claros como meu horizonte. Não, ela não foi uma interrupção, foi um grande complemento em minha manhã. “Bom dia minha amada mãe”. Abracei-a e deitei minha cabeça sobre seus seios puros, que me fortaleceram quando eu era apenas um bebê.

Não existe maldade no meu castelo.

“Sim mãe! Estou faminto! Por que não acordamos o meu pai e tomamos nosso deleitoso café da manhã?”. “Meu príncipe, seu pai está descansando, sabemos que não podemos interromper o repouso de um Rei.”. “Tudo bem, então vamos nós, amada mãe.”.

Caminhamos pelo castelo vagarosamente, minha mãe me guia com a mão em minhas costas, nosso caminhar é delicado, como se flutuássemos, no caminho encontramos alguns criados, cumprimentamos todos com um doce sorriso, eles nos reverenciam e prosseguem com seu trabalho. Somos amados por todos.

Chegamos ao nosso belíssimo salão de jantar. A mesa está pronta. Sentamos para deleitarmos da sublime comida temperada pelos melhores cozinheiros do ocidente. Então, Como É De Costume, entra por uma das portas meu tio. Homem grande, forte, com uma barba digna da realeza, não grande, nem pequena, digna. Minha mãe sorri ao vê-lo, vai até ele com movimentos angelicais e toca os lábios dela nos lábios dele, como quem vê alguém querido após muito tempo de ausência do mesmo.

Não existe maldade no meu castelo.

Ele guarda sua poderosa espada ao lado da porta, vem até mim e me beija na testa. “Você está crescendo meu sobrinho. Veja, trouxe este livro pra você, “Comentários menores, de Averróis” está no momento de começar se empenhar nos estudos, sobrinho.”. “Lerei tudo.”.

Sentamos juntos, comemos e ouvimos belas histórias de meu tio, sobre mil aventuras em reinos longínquos. Ficamos maravilhados. É tudo harmonioso. A voz do meu tio, o sorriso de minha mãe, as borboletas em pares lá fora, os criados limpando, o conforto da minha cadeira, o cheiro da deliciosa comida. Agradeço sempre aos Deuses pela grande dádiva que tem sido esses meus pequenos quinze anos de vida. Porém, também é sempre nesse momento que sinto algo estranho, parece que tentam me envenenar todos os dias. Fico mole, com ânsia, muito pesado, tudo começa a borrar, não posso mais tocar a comida na minha frente, meu olhar pesa, ouço ruídos terríveis que não vem de lugar nenhum. Porém, apesar de tudo, meu tio continua falando, minha angelical mãe continua com o seu belo sorriso ouvindo as histórias, parece que eles não notam meu tormento. Tento me fixar no sorriso de minha mãe, sinto que essa é a única forma de me manter vivo. Tudo apaga, percebo que meus olhos estão fechados.



Onde está o meu castelo?



- ONDE ESTÁ O MEU CASTELO?! CADÊ?! EU QUERO MEU CASTELO! EU QUERO!

- Atenção, paciente número 0489, João Cabral Neto, 32 anos, acaba de acordar em surto psicótico. Precisamos de três enfermeiros no quarto 48 preparados com o a droga psicotrópica injetável recomendada vide diagnóstico para esse paciente.

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Como sempre, acordei me sentindo estranho, não pensava direito, meus movimentos eram confusos, até as sensações eram confusas, o castelo parecia um pouco mais vazio que o normal, me senti sozinho. [...]

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